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A alteração legislativa do ITCMD no cancelamento do usufruto no Estado do Mato Grosso do Sul e suas inconstitucionalidades


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12 de setembro 2022

Por Ana Cristina Bandeira

O Código Tributário Estadual do Mato Grosso do Sul, na redação antiga, previa em seu art. 127, inciso VII que a incidência do ITCMD (Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis” e Doação) sobre a doação da nua-propriedade, sobre a seguinte base de cálculo, in verbis:

Art. 127. (omissis)

VII – na doação da nua-propriedade, 2/3 (dois terços) do valor venal do imóvel, apurado por avaliação administrativa;

Por sua vez, o mesmo código, continha a previsão para que o ITCMD incidisse sobre a instituição e no cancelamento do usufruto, da seguinte forma:

Art. 127 (omissis)

VI – na instituição do usufruto, por ato não oneroso, bem como no seu retorno ao nu-proprietário, 1/3 (um terço) do valor do imóvel, apurado por avaliação administrativa;

A Fazenda Estadual interpretava os dois dispositivos legais como fracionamento do recolhimento do ITCMD, em que o contribuinte deveria recolher a primeira parte, cuja base de cálculo correspondia a 2/3 do valor venal do imóvel quando da doação da nua-propriedade e, a segunda, quando do cancelamento do usufruto ou seu cancelamento, sobre o 1/3 do valor venal da propriedade.

A referida interpretação foi rechaçada pelo entendimento jurisprudencial firmado no âmbito do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, de forma uníssona, tendo firmado a tese de que o ITCMD, nos moldes autorizados pela Constituição Federal, em seu art. 155, inciso I, não autoriza a incidência do referido tributo estadual sobre fato estranho à transmissão de titularidade de bens em razão de doação ou causa mortis, na medida em que o cancelamento/extinção do usufruto nada mais é do que a consolidação da propriedade, que já havia sido transferida quando do ato de doação, conforme se lê dos seguintes arestos:

MANDADO DE SEGURANÇA – EXTINÇÃO DE USUFRUTO – CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE NAS MÃOS DO NU-PROPRIETÁRIO – AUSÊNCIA DE TRANSFERÊNCIA DE BENS E DIREITOS A TÍTULO NÃO ONEROSO – INEXIGIBILIDADE DO ITCMD – COM O PARECER DA PGJ – ORDEM CONCEDIDA. 1) Reside a controvérsia em relação à legalidade da incidência do ITCMD – Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e por Doação -, em razão da extinção do usufruto em decorrência da morte do usufrutuário.

2) A hipótese de incidência do ITCD subsuma-se à transmissão de propriedade causa mortis ou por doação, pelo que a mera extinção de usufruto, seja em razão do falecimento ou de renúncia dos usufrutuários, na forma do art. 1.410, inciso I do CC, não constitui fato gerador a justificar a exigibilidade do tributo em questão, pois a propriedade nunca saiu da esfera do nu proprietário.

3) Com o parecer da PGJ, ordem concedida para afastar a exação viabilizando-se, por conseguinte, o registro da baixa do usufruto por falecimento dos usufrutuários no Cartório de Imóveis Local, sem necessidade do recolhimento do imposto em testilha.

(TJMS. Mandado de Segurança Cível n. 1403955-49.2020.8.12.0000,  Tribunal de Justiça,  3ª Seção Cível, Relator (a):  Des. Geraldo de Almeida Santiago, j: 28/10/2020, p:  29/10/2020)REMESSA NECESSÁRIA – AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO – INCIDÊNCIA DO ITCMD – CANCELAMENTO DE USUFRUTO – AUSÊNCIA DE FATO GERADOR – COBRANÇA INDEVIDA – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. Consoante entendimento jurisprudencial dos Tribunais Pátrios, a morte do usufrutuário não configura transmissão do bem imóvel ou do direito real, mas apenas a consolidação plena da propriedade nas mãos do nu-proprietário, de forma que mostra-se arbitrária e ilegal a exigência de quitação do ITCMD para que se proceda à averbação da extinção do usufruto.

(TJMS. Remessa Necessária Cível n. 0801767-20.2020.8.12.0005,  Aquidauana,  1ª Câmara Cível, Relator (a):  Des. João Maria Lós, j: 30/08/2021, p:  03/09/2021)

Ocorre que, recentemente, a Lei Estadual n.º 5.80 de 17 de dezembro de 2021, ao alterar o Código Tributário Estadual, não só revogou os apontados dispositivos legais, como, em manifestação tentativa de driblar a jurisprudência em comento, introduziu o art. 127-A ao referido códex, com a seguinte redação:

Art. 127-A. No caso de doação com reserva de usufruto ou outro direito real, a parcela do imposto relativa a 1/3 (um terço) da base de cálculo correspondente ao valor venal do imóvel ao tempo da ocorrência do fato gerador caso não tenha sido paga por ocasião da doação, englobada, ou separadamente, com a parcela do imposto relativa aos 2/3 (dois terços) da base de cálculo, deve ser paga pelo donatário no prazo regulamentar. 

Parágrafo único. Na hipótese de que trata este artigo, a Guia de ITCD deverá ser preenchida e enviada, na forma prevista em regulamento, no prazo de 90 (noventa) dias, contado da data em que ocorrer o fato ou ato jurídico determinante da consolidação da propriedade, em favor do nu-proprietário, sujeitando-se, no caso de descumprimento, às disposições e às penalidades previstas nesta Lei. 

A redação tortuosa do indigitado dispositivo legal viola vários comandos constitucionais que permeiam o Sistema Tributário Nacional, sendo que a primeira mácula diz respeito ao núcleo material da regra-matriz de incidência, não revela transferência de titularidade de bens e de direitos qual seja não ter recolhido ITCD na integralidade do valor venal da propriedade quando da doação gravada com usufruto ou outro direito real, violando, assim, o comando constitucional do art. 155, inciso I, da Constituição Federal.

Ora, o ato de tributar pressupõe a autorização ao Estado para que possa retirar para si uma parcela de grandeza economicamente considerada de titularidade do contribuinte, a título de tributo, que se verifica no fato da propriedade de bens e direitos (IPTU, IPVA ou ITR), rendimentos do trabalho (imposto de renda), folha de salários (contribuições previdenciárias) ou na circulação de bens e serviços (ICMS e ISSQN), mas jamais um não fazer do contribuinte, vazio de conteúdo econômico.

Ao lado da eleição de fato a ser tributado desprovido de conteúdo econômico, é evidente a intenção do legislador em alcançar fatos ocorridos anteriormente à vigência do art. 127-A do CTE, que eram submetidos ao regramento anterior, cuja inconstitucionalidade foi reconhecida pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, em escancarada violação ao princípio da irretroatividade da norma tributária, prescrito no art. 150, inciso III, alínea “a”, da Constituição Federal.

Por fim, qualquer alegação no sentido de que, finalmente, teria sido disciplinado o suposto fracionamento no recolhimento do ITCMD no caso de doação de nua-propriedade gravada de usufruto, porquanto no novo modelo tributário foi revogado o dispositivo que dispunha sobre a base de cálculo do referido imposto estadual sobre 2/3 do valor venal do bem, que deve incidir sobre a totalidade do valor do imóvel em questão.

Portanto, o comando inscrito no art. 127-A do Código Tributário Estadual malfere a previsão constitucional que autoriza a instituição do ITCMD, pois o fato eleito para a sua incidência, qual seja, não ter recolhido o tributo na sua integralidade, é estranho ao conceito de transferência de propriedade de bens e direitos por meio de doação ou causa mortis”, assim como viola o princípio da irretroatividade, na medida em que alcança fatos já consumados em momento anterior à sua vigência.

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